20 de outubro de 2005

VIAGEM LONGA


Andar de ônibus, em São Paulo, é sempre uma aventura. Pula-se bastante, passando por lugares interessantes; vendo gente bonita, feia, esquisita, bêbada; às vezes, tudo em uma só viagem. Mas naquele começo de tarde, com os sóis ainda no alto, aconteceu algo inusitado.
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A viagem transcorria tranqüilamente. Uma Segunda-feira, dia 28. Nada novo no ar, a não ser trabalhadores duros, corajosos desempregados e uma meia dúzia de alunos voltando ao lar. Uma viagem comum. Somente um passageiro chamava atenção. A luz solar, em sua face ressequida, parecia não incomodar – o que era verdade. Nenhum esboço de reação; não se mexia, nem sequer um bocejo.
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As ruas esburacadas balançavam aquele corpo inerte. A cabeça batia repetidas vezes no vidro sujo, embaçado com a gordura ali impregnada; era o legado trabalhista deixado pelos passageiros sonolentos, a caminho do trabalho, na manhã que antecedera aquela tarde quente. E a cabeça do infeliz continuava a bater, às vezes com violência.
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Os passageiros olhavam, incrédulos, aquele bate-bate sem fim. Mas foram descendo pelo caminho: os trabalhadores, desempregados e também os alunos, exceto um. Quando o coletivo chegou ao ponto final, ele olhou para o cobrador – como que buscando seu consentimento – ao que recebeu como resposta um menear de cabeça no sentido vertical. Então, balançou levemente o passageiro dorminhoco. Não acordou. Um pouco mais de força: nada! "Senhor, senhor. Já chegamos ao terminal. Acorde!"
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O aluno, já assustado, tornou a olhar para o cobrador. Não sabia o que fazer. Estaria morta aquela pobre alma? O funcionário veio em seu auxílio e deu um safanão no pé da orelha do passageiro, obtendo resultado. "Ponto final Jão. Vai descendo!"
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O cara estava surpreso. Passara de seu ponto habitual. Envergonhado, pediu para voltar com o ônibus. O funcionário concordou. O aluno já havia ido embora para casa. Mais cinco minutos, e o motor roncava de novo. Começava o caminho de volta. "Vê se não dorme de novo aí, bicho!" O passageiro fez sinal de jóia, com o dedo polegar estendido para o cobrador. Nada adiantou. O bicho-preguiça voltou a dormir.
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Pelo caminho de retorno, outros passageiros entravam: alunos, desempregados e uns poucos trabalhadores. O motorista disse ao colega que deixasse o passageiro para lá. "No outro final ele volta!" – disse, soltando uma gargalhada. Seu parceiro o acompanhou no riso.
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Chegando ao término daquela segunda viagem, já com um ar cômico na face, o cobrador foi acordar a múmia do passageiro. Deu o tapa costumeiro, no pé da orelha, mas desta vez não viu os olhos do usuário se abrirem. Mandou outro, mais forte, e nada! O motorista também se aproximou e, tirando o maior sarro da cara do companheiro, perguntou: "Que foi. O piolho morreu!?'' – rindo.
O colega colocou a ponta do indicador sob o queixo do passageiro, verificando a pulsação, e disse: "Morreu!"

Um comentário:

Anônimo disse...

caramba, não vou mais dormir nos transportes.